Relato de uma Interrupção de Gravidez de Feto Anencefálico
Maio: Mês da Conscientização sobre Acrania e Anencefalia (Fonte)
ACRANIA e ANENCEFALIA são palavras que provocam muita dor nas mães, nos pais e familiares do futuro bebê. Também são palavras que remetem à opção de um aborto legalizado, e mais dor a quem passa por isso.
Nos EUA, dia 15/05 é o Dia Nacional de Conscientização sobre Acrania e Anencefalia, bem como ganhou o mesmo caráter todo o mês de Maio.
A cor da campanha de conscientização é verde, e a referida campanha sugere que as pessoas usem verde durante todo o mês de Maio, como forma de apoio a quem passa por esse sofrimento.
A acrania é a não formação total ou parcial dos ossos do crânio, ocorrida no feto no início da gestação. Está associada frequentemente com anencefalia. Com a ausência destes ossos e da pele que recobre a região, o cérebro do bebê fica desprotegido em contato com o líquido amniótico dentro do útero da mãe, e a condição resulta em anencefalia ao longo da gestação.
A anencefalia se caracteriza pela ausência total ou parcial do encéfalo, especialmente dos hemisférios cerebrais, ou seja, da parte superior do encéfalo. Porém o tronco encefálico está presente, mantendo as funções vitais do bebê e permitindo a ele alguns movimentos e reações.
Essa alteração ocorre logo no início da vida embrionária, em torno de 6 a 8 semanas gestacionais, mas a condição pode ser identificada em torno da 12ª semana da gravidez. A acrania associada à anencefalia possui uma incidência de um a cada mil nascimentos.
A acrania é diferente e menos grave que a anencefalia?
Embora o termo acrania possa sugerir que se trata apenas de uma má-formação óssea, e não cerebral, a acrania é na imensa maioria dos casos um primeiro estágio da anencefalia. Relatos em ultrassonografia evidenciam que ocorre a progressão de acrania para exencefalia e, finalmente, anencefalia, já que as estruturas cerebrais estão exteriorizadas do crânio.
Tanto no diagnóstico inicial de anencefalia quanto no diagnóstico inicial de acrania que progrediu para anencefalia, há casos com comprometimento maior ou menor do encéfalo, com sobrevida maior ou menor.
Mas a acrania tem sido tratada entre os médicos como um sinônimo ou parte da anencefalia, com a mesma gravidade e baixíssima expectativa de vida do bebê após o nascimento quando a gestação é levada a termo. (Fonte)
Tanto a acrania quanto a anencefalia remetem também a outra questão, bastante polêmica, e que merece destaque, sobretudo entre nós, juristas: o aborto legalizado.
Poder-se-ia discorrer acerca das alegações jurídicas que envolvem o tema, entretanto proponho hoje uma leitura um pouco mais humanizada e menos técnica. Em virtude da proximidade do mês de Maio, proponho contar aqui uma história.
E já que a ideia é conscientizar a respeito dessas doenças e do sofrimento de quem as vivencia, creio que um relato pessoal de uma mãe de uma criança anencéfala possa fazê-lo melhor do que qualquer argumentação jurídica que eu pudesse tecer.
Aborto Anencefálico: a história de Kauã dos Reis Freitas
Eu sempre tive minha menstruação bagunçada… Então demorei pra desconfiar…
Em julho fui a uma festa do milho aqui na minha cidade, com meu namorado e uma amiga, a única coisa que comemos em comum foi um churros… Os três passaram mal no dia seguinte… Mas eles melhoraram e eu continuei enjoadinha… Álcool começou a me fazer vomitar instantaneamente e viagens de ônibus então… Vish… Parei de beber, cortei totalmente a bebida (ainda bem!), mas jurava que estava tendo ataques de gastrite nervosa, porque os “sintomas” eram os mesmos e eu estava passando por um momento de muuuuito estresse (perdi uma vaga num concurso por causa da greve da minha “querida” faculdade! :/).
Depois veio uma dorzinha no seio, mas eu fazia academia e estava fazendo muito exercício de braço, então achei que era isso… E minha menstruação nem estava tão atrasada assim…
Mas, depois de vomitar algumas vezes, no dia 16/08 resolvi finalmente fazer um teste… E lá estavam os dois tracinhos rosas que significam alegria ou desespero extremo, depende da mulher…
Pra mim, significou: confusão. Chorei, não nego, chorei umas duas horas seguidas. Nem imagino o que meu namorado, que teve que sair pra trabalhar assim que viu o resultado, passou. Mas depois ergui a cabeça, contei pra minha mãe e fui comprar dois livros pro meu bebê. “Fraldas? Que nada! Ele será o bebê leitor mais fofo do mundo”.
Decidi encarar essa gravidez como o maior presente que eu pudesse ganhar na vida! Um serzinho sendo gerado dentro de mim e que eu seria responsável por ele pra sempre!
No dia 18 bem cedo eu já estava no postinho de saúde marcando meu primeiro pré-natal… Mas SUS vocês sabem como é, né? Marcaram pra dali uma semana e, quando eu cheguei no dia da consulta, a médica faltou. Remarcaram, quando eu fui de novo, ela nem olhou na minha cara e pediu uma ultrassom que até hoje eu não fiz…
Quando contei pro meu pai que ele ia ser avô ele decidiu me ajudar financeiramente com médico e fui fazer o pré-natal no particular. Cheguei toda contente e amei a médica que me atendeu. Marcamos a ultrassom pro dia 30/08 e lá estava eu. Fui sozinha e ouvi o coração do meu maior amor pela primeira vez, já estava com lágrimas enchendo meus olhos quando o médico soltou: “parece que tem alguma coisa errada com a cabeça do bebê, mas só quando ele estiver maior vai dar pra ter certeza”… Dei graças a Deus estar sozinha, precisei digerir muito aquela informação. Não chorei, as lágrimas secaram instantaneamente. Fiquei pensando que era um queixo amassado, um caroço que teria que tirar com cirurgia, qualquer coisa, algo sério, mas algo pelo qual eu passaria.
Saí da sala atônita, o médico não disse mais nada, pediu pra eu esperar lá fora enquanto digitava o laudo. Meu pai me perguntava “como foi?” e eu só soube falar “parece que tem alguma coisa na cabeça do bebê”. Peguei o laudo, li a palavra: acrania, seguida de interrogações e a menção que de só seria confirmado em exames futuros.
Cheguei em casa, depois de um percurso de 10 minutos, mas que parecia levar horas e corri para o sr. Google, pesquisar a palavra estranha, que já tinha um significado formado na minha cabeça, mas que eu me esforçava em convencer que significava qualquer coisa corrigível com uma cirurgia. Infelizmente a primeira impressão estava certa: má formação da calota craniana, evolui para anencefalia, incompatível com a vida. Li blogs, li artigos, li textos científicos, li depoimentos de mães, em inglês, espanhol e português, revirei a internet atrás de informações sobre acrania, jurando pra mim mesma que não iria evoluir pra anencefalia, que meu bebê teria uma chance e viveria tanto, ou até mais, quanto a Vitória de Cristo, que viveu quase três anos e evoluía bem. Toda vez que os artigos e as informações sobre acrania me levavam a algum dado ou sie sobre anencefalia, eu parava de ler, não queria aceitar que a acrania evoluiria para a anencefalia, não no meu bebê, no meu primeiro bebê.Eu sabia o que era anencefalia, a falta do cérebro no feto, e sabia também que a interrupção de gravidez nesses casos era legalizada e sabia que a decisão caberia a mim, somente a mim. E sabia que decisão iria tomar, mas acontece que meu bebê não tinha anencefalia, e ponto.
Na consulta a médica me disse tudo o que eu já sabia, que acrania era a falta de um “pedaço” do crânio, no caso do meu bebê era a parte acima da nuca, que era sério, mas que eu deveria esperar o bebê crescer mais pra confirmar, enquanto isso deveria tomar ácido fólico, curtir a gravidez e tentar não me preocupar “a toa”.
A espera me matava, eu sempre soube que se um dia eu engravidasse seria “sem querer”, sempre tive dúvidas e mudava de opinião toda hora sobre se eu queria ser mãe ou não… Então eu sabia que viria assim, sem aviso prévio, na hora que tivesse que vir. Estava tranquila quando descobri a gravidez porque sabia que estava na época mais saudável da minha vida, cuidando da alimentação e da saúde, emagrecendo e não tomando anticoncepcional, então poderia vir ou não, mas se viesse, seria bem vindo.
Passei do dia 30/08 ao dia 17/09 (dia da segunda ultrassom), pesquisando TUDO (o que não era muito), sobre acrania, entrando em grupos de apoio no face (aos quais sou imensamente grata), desabafando, sentindo nervoso, fazendo tudo, menos, infelizmente, curtindo a gravidez. O tempo passava e nunca senti meu bebê mexer, nunca senti muito além de um cantinho da barriga duro e sono… Muito sono. Sono que vinha acompanhado de pesadelos, que ainda vem acompanhado de pesadelos… Eu, aos 23 anos, sem emprego, sem conseguir me formar na faculdade por causa de uma maldita greve, grávida de um bebê que eu talvez nem conheceria…
O apoio da minha família e do meu namorado foi a melhor coisa, dormir todas as noites no ombro dele espantava a maioria dos pesadelos, que vinham mais na hora em que ele não estava. Chegar em casa e ver o Yuki, meu cachorro, também me confortava de um jeito inimaginável.
Dia 17/09, finalmente, fui fazer minha segunda ultrassom, minha mãe veio pra minha cidade e não soltou minha mão um minuto. A conversa sobre a decisão que eu tomaria caso o diagnóstico fosse confirmado não precisou existir, minha mãe me apoiava e decidimos que, se ao sair dali o médico nos desse a incrível notícia de que meu bebê iria viver, iríamos rodar a cidade comprando o enxoval, ela jurava que sua primeira netinha seria menina. Minutos antes de entrar na sala eu simplesmente entreguei nas mãos de Deus, disse, em oração, que ele fizesse o que pudesse, o que fosse certo e abençoasse a minha decisão.
Fui “forte” até a hora de entrar na sala, quando sentei na cadeira onde seria examinada, desabei em choro. O médico entrou e perguntou o porquê, se minha mãe não tivesse lá, eu não conseguiria falar, ela explicou a situação, que estávamos ali não por rotina, mas para descobrir de uma vez por todas se o bebê estava bem, ou não. O médico então começou e foi direto ao assunto: “é… Realmente há uma má formação, não formou encéfalo…”, eu só completei: “anencefalia…” e ele concordou com a cabeça “sim, não há mais dúvida nenhuma, dá pra confirmar agora”. No silêncio, ficou claro que eu já sabia tudo o que precisava saber, ele continuou, ouvimos o coração, as lágrimas secaram de novo e eu pedi: “dá pra ver o sexo?”. Ele fez o que podia, eu estranhei que meu bebê estava exatamente na mesma posição da outra ultrassom e, mesmo com o chocolate, que dizem ser milagroso, e vários chacoalhões que o doutor deu, ele não se mexeu nem abriu as pernas, mas o médico me disse que tinha 90% de chance de ser um menino. O nome já havia sido decidido por mim e por meu namorado há tempos: Kauã, meu amor maior.
Saímos da sala, eu e minha mãe, para esperar o laudo, chorei, choramos… O laudo veio e lá estava, confirmado: anencefalia.
A acrania, por fim, evoluiu para anencefalia, meu maior pesadelo, o que eu mais temia, se tornou real. E minha decisão já estava tomada, sabia dos riscos que correria, sabia de como apontariam os dedos pra mim e me criticariam, sabia que enfrentaria muita coisa, mas já tinha tomado. Saí dali e fui tomar um sorvete com a minha mãe, meu pai se juntou a nós e me deu o abraço mais forte que já recebi em toda a minha vida. Meu namorado, mais tarde, me deu um abraço igual.
Na consulta, minha médica me explicou o que eu já sabia e me deu as opções: continuar com a gravidez, ou interromper, mas de qualquer forma eu seria encaminhada a outro hospital, onde havia UTI neo-natal e onde eram atendidas todas as gravidez de risco da cidade.
Sim, eu decidi interromper a gravidez. Eu tinha decidido isso da primeira vez que eu ouvi falar sobre anencefalia, eu tinha decidido isso anos antes de sonhar em engravidar, quando soube do que se tratava, do quanto seria difícil levar uma gravidez até o final sabendo que não haveria chorinho de bebê, que não o levaria pra casa, que haveria apenas um vazio. Sabia que eu não seria forte o suficiente para levar isso adiante. Sentia inveja e orgulho de quem conseguia, mas EU, não conseguiria.
Com a gravidez avançada, entrando no quinto mês, nenhum médico, mesmo com a lei dizendo que não era necessário, aceitou fazer o procedimento sem um aval judicial. E lá fui eu esperar mais algumas boas semanas, correndo atrás de advogados, promotores e juízes, para conseguir essa autorização.
Não era um aborto, era um parto antecipado, eu tomaria remédios que forçariam a contração e a saída do bebê, eu passaria pela experiência do parto, mas seria antecipadamente, para não levar o Kauã na barriga os nove meses, pra não prolongar o sofrimento meu, dele e de nossa família inteira.
A autorização demorou, mas saiu e, quando internei descobri que não precisaria mais, porque o coração do Kauã já não estava batendo, por fim foi feita a vontade de Deus e realmente aquela era a hora dele.
Fiquei uma semana internada, minha mãe veio, largou o serviço, largou tudo e veio ficar ao meu lado, ela dormindo em uma cadeira e eu recebendo remédios e calmantes de seis em seis horas, que não fizeram efeito, até que decidiram me colocar no soro, eu com toda minha fobia de agulhas, tomando soro por mais de 24 horas… Fui SUPER bem atendida, só tenho palavras de carinho, amor e elogios para dirigir à equipe do hospital, mesmo sendo do SUS, ficamos em um quarto só eu e minha mãe. Eu, o Kauã e nossa decisão foi respeitada o tempo todo e eu conseguia sorrir e me acalmar.
No dia 03/11/2014 eles vieram me dizer que, se o soro não fizesse efeito, iriam colocar uma sonda para forçar o parto de uma vez por todas, eu não queria isso, queria o parto mais normal possível, senti medo pela primeira vez e, por milagre ou como vocês quiserem chamar, o soro começou a fazer efeito. Ás 13h, mais ou menos, uma dor insuportável, chamada contração, começou e não passava. Minha mãe tinha tido apenas cesárea e dizia que não estava na hora, eu dizia “mãe, por favor, chama a enfermeira, eu SEI que está na hora”, até que ela tentou me virar na cama e a dor foi tão intensa que comecei a gritar… As enfermeiras vieram correndo fazer o toque e, no fim, eu estava certa, estava na hora, estava tão na hora que aconteceu tudo ali mesmo, no leito. Não houve tempo do médico chegar, não houve tempo de me levarem para a sala de parto. Eu gritava que não ia conseguir, elas me incentivavam a fazer força “com a barriga, não com o pescoço” e, de repente, eu mesma, com uma força que sabe Deus de onde saiu, estourei minha bolsa. E, em seguida o Kauã nasceu. Naquele silêncio que eu vinha me preparando para enfrentar, aquele silêncio que significava o que a enfermeira me confirmou em seguida “nasceu morto”.
Deu tudo certo, a placenta saiu e não precisei de curetagem nem nada, foi tudo normalzinho, “do jeitinho que eu queria”… Não quis ver o Kauã, não sei se escolhi a coisa certa, mas dias antes eu havia sonhado com ele, lindo, vivo e perfeito e quis ficar com essa imagem na minha cabeça, com medo de me chocar muito, com medo de ter mais medo depois, com medo dos pesadelos depois de um sonho tão bom. Ele tinha apenas 350 gramas, essa é a única coisa que sei em concreto sobre ele… Minha mãe, coitada, que nem o parto queria assistir, teve que ver tudo ali, ao meu lado, porque foi tudo rápido demais e no leito. Mas ela também não quis ver o Kauã daquele jeito. Nem meu pai. Nem meu namorado. Ficamos com a melhor imagem que tínhamos dele. Fiz certo? Fiz errado? Não sei, mas foi o que consegui fazer naquela hora.
Ainda tenho sonhos, ainda tenho pesadelos, coloco a mão na minha barriga e tenho medo de apertar, parece que não foi real, parece que ainda estou grávida. Parece que não foi real, parece que nunca fiquei grávida. É confuso.Mas sei que, no fundo, tudo acontece por um motivo e que um dia eu talvez entenda, ou talvez não…
O Kauã é meu filho, meu primeiro filho e, mesmo não curtindo a gravidez, mesmo com incertezas e pesadelos, eu o amei e eu o amo demais… E sinto falta dele, mas sei que fiz a escolha certa pra nós dois. Evitei um sofrimento maior do que o sofrimento que estou enfrentando agora… E escrevo aqui esse relato para que as pessoas que tomarem a mesma decisão que eu saibam que não estão erradas, que não há decisão certa ou decisão errada, há apenas pessoas que devem ponderar o que é melhor pra saúde mental delas. Afinal de contas, é contra a natureza das coisas o filho ir primeiro que a mãe. E a dor é sempre pra quem fica. E ninguém merece essa dor. E Deus não nos dá carga maior que aquela que possamos carregar. E não devemos tentar levantar mais peso se sabemos que não aguentamos. E se não aguentamos precisamos ser honestos conosco. No fim estaremos sós, ninguém jamais vai segurar nosso fardo e sentir nossas dores, por mais que estejam ao nosso lado e jurem entender.
Kauã, meu amor maior, meu pequeno príncipe, sei que você está aí em alguma estrela pequenina cuidando de uma rosa e rindo dos guizos a noite. Nunca ouvi sua voz, porque não preciso de suas palavras, apenas do som do seu coração… E esse eu ouvi muito e ainda ouço todas as noites em meus sonhos! Te amo! (Texto originalmente postado no Blog Klaryan.com, por Aime Reis)
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Diário Criminal
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