Violência Doméstica: "Apanha Porque Gosta, Fica Porque Quer".

Uma pausa no mundo jurídico para falar de humanidade.


O texto de hoje pouco tem de jurídico.
É, em verdade, um desabafo de quem trabalha todos os dias com violência doméstica. Por essa mesma razão, peço antecipadamente desculpas se as ideias parecerem desordenadas, mas devo dizer que as palavras aqui depositadas são parte de uma loquacidade sobre um assunto que considero bastante doloroso. E o qual vivencio de perto todos os dias.
Como todo mundo sabe, já cansou de ouvir, ver, ler, absorver por osmose... O tema da redação do ENEM foi sobre "A Persistência da Violência contra a Mulher na Sociedade Brasileira".
Pois bem.
Eis que choveram comentários nas redes sociais, causando as reações das mais diversas, em uma polêmica já esperada. Desde feministas comemorando, a machistas criticando, e até uma guerra de gênero chegou a rolar. Dada toda a devida contenda, foi-me perguntado, por diversos leitores, qual era a minha opinião sobre o assunto. E, para ser sincera, isso me remeteu a uma questão ampla de violência doméstica, que vai muito além da questão de gênero.
Antes de mais nada, cumpre salientar aqui algumas constatações. Dizer que machismo não existe é um tanto quanto utópico. Basta olhar ao seu redor e tenho a certeza de que você não precisa se esforçar muito para encontrar alguma mulher da sua família ou amigos que foi criada para casar e ter filhos, e que foi privada de estudar ou de trabalhar. Sua mãe? Sua avó? Minha mãe mesmo é um exemplo de superação contra o machismo (porque mulher não pode estudar!) e de outras coisas mais.
Não faz muito tempo, historicamente, que as mulheres começaram a ter algum valor maior em uma sociedade milenarmente dominada por homens. E é claro que, por mais avanços que já tenhamos, e devemos reconhecê-los com muito louvor, ainda existem muitos resquícios desse machismo na nossa sociedade.
Eu, a propósito, agradeço e muito às feministas que queimaram sutiãs em praças públicas antes de eu nascer, pois graças a elas e a esse movimento hoje eu trabalho fora, tenho minha independência financeira, pude escolher minha profissão, posso escolher se quero casar ou não (por mais que ainda exista pressão social para isso), bem como tenho relativa autonomia para gerir a minha própria vida, coisa que, por exemplo, a minha avó já não teve.
Hoje temos mulheres advogadas, médicas, dentistas, engenheiras. Temos grandes executivas. Temos mulheres que ganham muito melhor que homens. Hoje temos muitas mulheres no poder. Mas isso não quer dizer que conseguimos eliminar todo o resquício do machismo que existe. Infelizmente, ainda estamos rumo a isso, e ainda falta um longo caminho para alcançarmos uma igualdade ideal.
Dito isso, continuemos.
O tema da vez era a violência contra a mulher, e muitas pessoas, possivelmente contrariadas pelo movimento feminista, que em seus âmbitos mais radicais chegou a conquistar certa antipatia, proferiram palavras de ódio ou mesmo repletas de arrogância nas redes sociais. Desde o famoso clichê "apanha porque quer", até mulheres que afirmaram que jamais sofreram violência de homem nenhum e que nunca permitiriam uma coisa dessas, claramente apontando o dedo a quem, supostamente, permite.
É importante salientar que nenhuma pessoa, em sã consciência, gosta de sofrer. Ninguém busca o sofrimento por livre e espontânea vontade. É como o usuário de droga que,por mais ciente que esteja do mal que a droga faz, cede ao vício e busca a droga novamente. Por que? Porque alguma coisa boa aquilo trouxe alguma vez na vida que criou uma dependência. Alguma reação positiva aquilo causou em algum momento para criar essa dependência.
Outra coisa que é necessário salientar é que, diferente da droga, que todo mundo sabe o quão destrutiva é, nenhuma pessoa se apresenta à outra anunciando ser um agressor em potencial. Ou você já ouviu alguém se aprensentar dizendo: "Olá, tudo bom? Eu vou te tratar como um lixo, te torturar psicologicamente e te bater. Vamos ser amigos?". As pessoas, com raras exceções, apresentam-se como pessoas legais, simpáticas, bacanas, cordiais, solícitas.
Relacionamentos se iniciam porque a relação interpessoal naquele caso era boa pra ambos. Ninguém entra em um relacionamento sabendo que vai apanhar ou ser mal tratado de qualquer forma, sem se importar.
Em geral, os relacionamentos se iniciam com romantismo, gentilezas, trocas de confidências. E até que a agressão chegue a um ponto crítico, muita coisa já aconteceu e a vítima já se envolveu de uma forma tamanha que já não é simples sair daquele emaranhado. Além disso, é preciso ressaltar que dificilmente uma agressão física surge sozinha. As agressões físicas costumam vir acompanhadas de agressões psicológicas, que nesses casos se apresentam praticamente como uma tortura psicológica.
E é dessa vítima, já extremamente fragilizada por toda essa tortura, que estamos falando. É essa vítima que, já mergulhada em uma dependência emocional (essa muito pior que a financeira), leva um tapa na cara, um beliscão no braço, um soco no olho.
Qualquer tortura psicológica gera sequelas. Vide a própria figura do Assédio Moral nas Relações de Trabalho, que vem cada vez tendo mais espaço no nosso ordenamento jurídico. No entanto, quando falamos da Lei Maria da Penha (esta inevitável quando o assunto é violência doméstica) estamos falando de uma violência (e existem cinco formas desta, e não apenas violência física - aliás, a física costuma ser apenas o estopim, quando todas as outras já estão bem consolidadas no relacionamento) que ocorre no âmbito mais íntimo de convivência de uma pessoa. É uma violência que ocorre dentro do círculo afetivo mais próximo da vítima.
Não foi um estranho que te agrediu (não que isso não seja ruim!). Não foi aquele cara de quem você nunca gostou mesmo que te agrediu verbalmente, te diminuiu e cuspiu em cima. Foi aquela pessoa para quem você abriu as portas da sua casa, da sua vida.
É aquela pessoa para com quem você sente muito carinho, afeto, preocupação. São as pessoas em quem você mais confia, e é aí que mora a pior das traições. Porque a violência doméstica, em sua grande maioria, apresenta-se de forma tão perversa que o agressor usa todos os pontos fracos da vítima (cuidadosamente confidenciados por ela própria) para manipulá-la, agredi-la, diminui-la.
Estamos falando de uma violência que ocorre dentro da sua casa, do seu lar, do seu "cantinho". Do lugar que deveria representar para você segurança, descanso, paz, tranquilidade. O lugar que deveria ser o seu refúgio.
Estamos falando de uma violência praticada por pessoas que você ama e em quem confia. Por pessoas para as quais você se abriu ao ponto de se deixar ser agredido quase sem perceber. O que isso quer dizer? Que a maioria das pessoas não percebe que está sofrendo violência doméstica, até que as agressões se tornem escancaradas demais. Mas quando isso acontece, a vítima já está envolvida demais para simplesmente virar as costas, bater a porta e sair.
Além disso, existem outras variantes que agravam a situação, como a romantização do abuso (o famoso "sofrer por amor", tão pregado em algumas músicas, contos, romances, etc), a dependência financeira (que costuma acontecer entre pessoas de uma mesma família, ainda que em graus diversos), e até mesmo a vergonha de admitir que não deu certo.
No caso da violência doméstica praticada entre cônjuges (porque, sim, a violência doméstica pode ser praticada de pais pra filhos, de filhos para pais, avós, tios, primos, irmãos, e não apenas entre pessoas que mantém um relacionamento amoroso), o que se vivencia, muitas vezes, é a vergonha de recolher suas coisas, deixar de lado vários planos e sonhos, e admitir que o seu relacionamento (aquele das fotos bonitinhas no Facebook e das frases de efeito) não era, de fato, um conto de fadas.
A vergonha de admitir que apanhou, que doeu, e que vai continuar doendo por um bom tempo ainda. A vergonha de admitir que "fracassou" e que aquela coisa linda não era o "amor da sua vida". Mas a pior de todas: a vergonha de dizer que amou e confiou em quem te agrediu.
E nesse momento muitas pessoas levantam cartazes gritantes: "Mas isso não era amor!". Será que não? Luís Vaz de Camões, já antes de 1600, dizia sobre o Amor:
"É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade."
Será que nós, olhando de fora, temos mesmo o condão de dizer o que é ou não amor, o que sente ou deixa de sentir aquele que está no olho do furacão? Será que cabe a nós determinar (ou talvez pré-julgar) o sentimento alheio?
As sequelas de uma vítima de violência doméstica não são fáceis de curar. Em geral, é aconselhável que busque ajuda profissional, fazendo um acompanhamento psicológico e, em alguns casos, até psiquiátrico.
Sobre aquela famosa pergunta: "Mas por que elas não vão embora? Por que continuam ali?", cumpre salientar que a tortura e manipulação psicológicas são tamanhas que a vítima, muitas vezes, perde seu referencial, sua identidade. A vítima se mistura ao seu agressor de tal maneira que romper com aquilo é extremamente doloroso. É quase como romper consigo mesmo, estourando-se em milhões de caquinhos, e é necessário muita coragem para depois recolher todos os cacos, separar o que é seu e o que é do agressor, e somente então se reconstruir. Muitas vezes esse processo parece ser mais doloroso do que continuar ali.
E não é nem um pouco incomum encontrarmos vítimas de violência doméstica que apresentam quadros depressivos. São sintomas da depressão a sensação de culpa, insegurança e falta de iniciativa. Para uma pessoa deprimida, muitas vezes tomar um banho requer um esforço tremendo. Imagine então essa pessoa, esvaída da sua própria identidade e personalidade, em um quadro de depressão profunda, tentar tomar alguma atitude positiva para parar a violência e se separar do agressor, terminar um casamento, pedir um divórcio, sair de casa, aguentar as chantagens emocionais do outro. Às vezes a questão vai além: existem filhos, dificuldades financeiras, falta do apoio de familiares. E a vergonha.
A violência doméstica é, ao meu ver, uma das violências mais prejudiciais, justamente pelo caráter de intimidade que a vítima tem com seu agressor.
E, na minha concepção, falar de violência doméstica não é, necessariamente, falar sobre gênero. É falar sobre o ser humano. Aliás, diga-se de passagem, acho que é preciso ter muito cuidado com algumas ideologias mais radicais e extremistas. Outro dia li um relato de um homem que sofreu violência doméstica e contou a dificuldade que teve em sair dessa situação, uma vez que não apenas não contava com as medidas da Lei Maria da Penha (cuja tutela almeja apenas a vítima mulher), como ainda enfrentou chacotas e ofensas na Delegacia de Polícia, porque "apanhou de mulher". E então tive o desprazer de ler um comentário que dizia: "Homem sendo vítima do próprio machismo. Bem feito!".
Bem feito? Uma pessoa que foi violentada em seu âmbito mais íntimo, mais vulnerável, por alguém em quem confiou, para quem se abriu, se mostrou, se permitiu... E que ainda criou coragem para contar a sua história, é uma situação muito séria e muito triste para se dizer "bem feito". Para se limitar e se reduzir a uma discussão de gênero. Mulheres sofrem mais violência doméstica que homens? Estatisticamente e culturamente, sim! Mas isso não significa que o contrário seja menos repudiante.
A Dignidade da Pessoa Humana é direito fundamental, preceituada no rol do art. 5o da nossa Constituição Pátria, e é direito de TODO ser humano ser tratado com dignidade, seja por quem for. Se esse direito for violado, a culpa NÃO é da vítima!
Além do mais, é impossível não reparar certa arrogância em pessoas que "não compreendem" como a vítima da violência doméstica não toma uma atitude e permite que aquilo aconteça. Para você que não consegue entender isso, se você nunca sofreu violência doméstica, se você nunca permitiu que ninguém o tratasse com menos respeito do que lhe é de direito, se você nunca foi manipulado por absolutamente ninguém, meus sinceros parabéns! Espero que você possa um dia ensinar outras pessoas a agirem da mesma forma, pois certamente estará fazendo um favor e prevenindo muitos casos de violência doméstica. Mas, por favor, não apedreje quem teve experiências de vida diferentes da sua.
É comum o sentimento de distanciamento do objeto, isto é, "isso nunca aconteceria comigo", mas a verdade é que a vítima de violência doméstica não é aquela mulher estereotipada (novinha, cheia de filhos e com mais um na barriga, dependente financeiramente do marido, etc etc).
A vítima de violência doméstica é aquela advogada, médica, dentista, engenheira. É aquela grande executiva. Aquela mulher que ganha melhor que o homem. Aquela mulher no poder. Sou eu. É você. É qualquer uma. É qualquer um.
E se ainda assim você não conseguir compreender que é uma questão complexa, que envolve muitos âmbitos, que vai muito além da Lei Maria da Penha, que vai muito além de qualquer movimento social, radical ou não, e que não se resume a "apanha porque gosta", ou "fica porque quer", ao menos tenha um mínimo de respeito por outro ser humano e entenda que ele, naquele momento, e por razões diversas que não cabem a você julgar, não conseguiu fazer melhor, e a última coisa que ele precisa agora é de mais agressão.
Vai por mim, você não precisa ser mais um apontando o dedo. Você consegue fazer melhor que isso.


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3 comentários

  1. Riquissimo o seu texto. Tem um exemplo desse na novela A regra do jogo. A mulher sofre nas maos do marido que sabe atacar o seu ponto mais fraco sua autoesrima baixa para continuar a abusá la. Parabens.

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  2. Seu relato é lúcido e profundamente tocante! Divulguei para incentivar mais reflexões como esta.

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  3. Parabéns Dra, suas palavras são: sábias, profundas e muito profissionais.

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