O Atestado de Óbito da Presunção de Inocência - Por que a decisão do STF é tão importante?


O Brasil é um país que já historicamente sofre com a criminalidade, com a corrupção e com impunidade. Já estamos exaustos de ler todos os dias na mídia notícias de políticos envolvidos em emaranhados monstruosos de corrupção, de grandes executivos flagrados em crimes de colarinho branco, isso sem falar nos roubos, homicídios, estupros.

A decisão do STF que permite o cumprimento de pena após sentença condenatória em segunda instância é, para o brasileiro leigo, um alívio. Uma forma de supostamente estancar a impunidade que tanto assola a nossa pátria. Todavia, para todo aquele que conhece o ordenamento jurídico, essa decisão representou praticamente um atestado de óbito da Presunção de Inocência.

"Mas se a pessoa foi condenada em segunda instância, não é óbvio que seja culpada?". Na verdade, não. E vamos explicar aqui porque a presunção de inocência é tão importante.

Primeiramente, tem-se que é um princípio jurídico de ordem constitucional, expressamente previsto pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Trânsito em julgado significa que a sentença é definitiva, não há mais como recorrer. De tal forma, havendo ainda a possibilidade de recurso, não há o trânsito em julgado, então, segundo nossa Constituição, não se pode considerar culpado o réu.

Vale lembrar que a Constituição Federal de 88 foi criada em um movimento pós-guerra, em meio à disseminação dos Direitos Humanos e preza primordialmente por esses direitos. É por essa razão que nossa Constituição prevê o direito à vida, o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à saúde, dentre outros direitos de ordem íntima do ser humano.

Não fosse o suficiente, o princípio da presunção de inocência é aplicado ao direito penal, e aí entramos em um assunto mais próximo da questão da criminalidade. É preciso compreender que o direito penal não é um direito como os demais: é um direito subsidiário, isto é, um direito que entra em cena quando nenhum outro ramo do direito pôde solucionar o problema. E por que? Porque as sanções do direito penal são muito severas. Uma condenação criminal enseja um problema para o resto da vida do indivíduo, que carregará consigo seus antecedentes criminais. Não obstante, algumas das sanções penais ensejam a privação da liberdade, tolhendo do ser humano um de seus direitos mais primordiais. Exatamente por essa razão, por suas penas serem tão severas e causarem um impacto tão imenso na vida social do indivíduo é que existem diversas regras a favor do réu. Desde as medidas despenalizadoras, nos crimes de menor potencial ofensivo, até a suspensão condicional do processo, visando evitar-se uma condenação criminal. O princípio da presunção de inocência, o princípio do in dubio pro reo, dentre outros princípios de ordem constitucional que se aplicam ao direito penal visam sempre proteger a dignidade da vida humana. Além disso, é também preciso compreender: 

"Não havendo certeza, mas dúvida sobre os fatos em discussão em juízo, inegavelmente é preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, pois, em juízo de ponderação, o primeiro erro acaba sendo menos grave que o segundo." (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. voluma 1. Impetrus. Niterói: 2012, p. 13).
Agora imaginem que uma pessoa, portando uma condenação criminal em segunda instância, começa a cumprir pena, como se pena definitiva fosse, enquanto recorre ao STJ e ao STF. E vislumbremos que em um desses recursos é constatada a inocência dessa pessoa (o que, não, não é tão incomum). Imaginem que essa pessoa ficou presa, tolhida de seu direito à liberdade,  cumprindo uma pena da qual depois foi eximida.

Não é necessário ir muito longe: existem inúmeros filmes e livros que narram a história de inocentes condenados, sejam pelas mais diversas razões. Ademais, é necessário compreender também que o nosso sistema jurídico é coordenado por seres humanos, e todo ser humano falha. Imaginem os senhores se nossos direitos mais íntimos estivessem à mercê das falhas do judiciário (em verdade estão, mas princípios como o da presunção de inocência visam evitar essa situação, garantindo maior segurança jurídica aos cidadãos).

As prisões irregulares não são incomuns. Prisões abusivas, desnecessárias, que ao fim do processo culminam em uma absolvição. Mas até lá o indivíduo já teve sua vida completamente afetada pelas falhas do judiciário. É preciso levar a sério os princípios de ordem constitucional, ao menos enquanto nossa Constituição Federal estiver vigente.

A Constituição Federal é nossa "lei maior", sendo que toda e qualquer norma constante do ordenamento jurídico deve se submeter à Constituição. Uma vez que o próprio STF profere decisão contrária à Constituição, fere-se nossa maior garantia. Fere-se a segurança jurídica. E isso é infinitamente mais prejudicial à sociedade do que a impunidade.

No dia 24 de fevereiro de 2016, "dois baianos recorreram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para denunciar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, ao negar o pedido de habeas corpus 126292, ao réu Marcos Rodrigues Dantas, permitiu a execução de uma pena a partir da confirmação de uma sentença a partir do segundo grau de jurisdição. As denúncias foram apresentadas, de forma separada, pelo procurador de Justiça e especialista em direito processual penal Rômulo Moreira e pelo advogado Ivan Jezler, da Associação dos Advogados Criminalistas da Bahia (AACB). O procurador de Justiça alega que a decisão do STF viola a presunção de inocência, já o representante da AACB, vai além, e diz que a decisão viola o devido processo legal e a dignidade da pessoa humana. O relator do habeas corpus, ministro Teori Zavascki, entendeu que a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas confirmam a culpa do condenado, e, por isso, a execução da pena fica autorizada. O processualista, na denúncia, pontua que a Constituição Brasileira, de 1988, ainda possibilita a interposição de dois recursos extraordinários, sendo um perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outro perante o STF. “Enquanto não julgados estes recursos a decisão ainda não pode ser considerada definitiva pela legislação brasileira. O acusado só poderia vir a ser preso cautelarmente, por meio da decretação de uma prisão preventiva, nos termos dos arts. 282, 312 e 313 do Código de Processo Penal brasileiro”, pontua Rômulo. O procurador salienta que, nesses dois recursos, a pena pode ser anulada ou modificada.Rômulo frisa que o STF modificou sua própria jurisprudência, tomado no julgamento de um habeas corpus, em 2009, que condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado, mas ressalvava a possibilidade da decretação da prisão preventiva. “Até 2009, o STF entendia que a presunção da inocência não impedia a execução de pena confirmada em segunda instância. A Suprema Corte brasileira, portanto, incide em reiteradas decisões conflitantes, causando uma séria insegurança jurídica aos jurisdicionados." (fonte)

Gravíssima é a decisão do STF, contrariando princípios da nossa própria Constituição enquanto deveria, em verdade, defender a aplicação desta em todos os âmbitos e a todos os seres humanos, sem distinção.

Na iminência da insegurança jurídica, o que temos é uma terra sem lei. Um país que infringe sua própria "lei maior" e fere o direito de cada um dos cidadãos.

Agora o que temos é aguardar a resposta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e torcer para que ela faça o papel do STF e defenda a nossa Constituição e os direitos fundamentais de todo e qualquer ser humano.






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